quarta-feira, 25 de julho de 2012

À maneira mineira


Carlos Drummond de Andrade
1902 – 2012



Um sentimento de mundo entranha o semblante das coisas
E a rua desce, afoita como a chuva
Sem pressa, sem passos, espreita
Bovinamente
Qual folhas ao sabor do vento
Sem vento.

Sempre quis estar na outra calçada!
A bolinar os homens, em seu atropelo
Tropel talvez, no desencontro da procura
Um vislumbrar sobre ombros curvos
Que nunca se atreve aos olhos
Bovinamento turvos.

Eu os quero homem! Muito homem
Uma ânsia louca, um despertar profano
Que se atira inteiro por sobre partes
Feito fêmea em cio e despudorada
Sem medir limites de satisfação
Deslizando em corpo, em alma
Até ao mais fundo do espírito.

O homem extremado
Não do sereno orvalho, que apenas beija a face da folha
E resvala ao chão, pelo seu próprio peso
Mas o de arrebatadora tempestade
Que deflora a mata e assassina às raízes
E desponta calma, inocência em lago.

O selvagem
Não o polido, às mesuras servo
Que no seu intento um vazio emana.
Mas aquele, feito à força do não ter razões
Sem futuro, sem vestígios, todo um segundo
De valores tão só por si
Que o mais é mero; e afasta
A rudes golpes: elegia do brutal.

Eu quero o avaro, o déspota, o alucinado
Brotado do intangível como seja
Que importa como ele seja
Contanto que o seja e Homem
Disposto a estar disposto
Natural como eu o quero
Homem-talento!

Mineiramente sagaz
Trilhando em falsete a farsa
Em sutis maneiras
A despontar silente noutra calçada
(nomeio, do caminho, nenhuma pedra!)

A infinda lua desce, qual numa balança
- madrugada adentro seu pesar aumenta-
Logo, logo, o Sol, tão leve e fresco
Adentrará aos olhos bovinamente entorpecidos
Dos homens, numerados com o amanhecer
A povoar calçadas, indistintamente cá
Ser ver nem ser visto viscejante
A garimpar palavras
A esculpir sentidos
A exalar Poesia.

Um semblante de mundo entranha o sentimento das coisas
E a outra calçada permanece inata
Imensamente despovoada, altiva
A seduzir meus laços, estreitos laços
Como as andorinhas constroem o seu verão
E, com ramalhetes de primavera
Os ofertam às musas suas, andorinhas também.